Pages

domingo, 2 de outubro de 2011

Seminario - O teatro e a mascara



quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A revanche dos invisíveis: territórios, educação no campo e inovações metodológicas

Fotos: Ribamar Ribeiro Jr\IFPA\Centro Cabanagem\Marabá-PA
Desde 1987, quando o governo reconheceu a primeira área ocupada como projeto de assentamento (PA) da reforma agrária, o Castanhal Araras, no município de São João do Araguaia, sudeste do Pará, o campesinato do sudeste tem conseguido se efetivar nas terras do Araguaia-Tocantins. 
Hoje são cerca de 500 PA´s, que representam mais de 50% do território dos 36 municípios do sul e sudeste do estado sob a responsabilidade do INCRA. Nenhum tratado científico havia previsto a fixação da categoria numa área marcada pela aguda disputa pela terra. Ao contrário, a tese residia em que, esgotada a floresta, os camponeses seguiriam em itinerância e dariam lugar à eficiência da atividade capitalista.
A territorialização vai além da definição de uso do solo\espaço, ela se encontra com o reconhecimento econômico, social e político dos\as camponeses\as. Passa pelo campo simbólico, com a nomeação de PA´s com nomes de mártires da luta pela terra, caso de Expedito Ribeiro, João Canuto, Irmã Adelaide, João Batista, entre outros.
Tem-se a eleição de militantes e dirigentes a cargos em executivos e legislativos da região. E ainda algumas políticas públicas em diferentes dimensões, como moradia, crédito para produção, assistência técnica, mesmo que marcada por descontinuidade. Ressalte-se a institucionalização de inúmeros órgãos públicos, como o IBAMA, INCRA, INSS e o Ministério Público.
Talvez a expressão mais contundente resida na área de educação. Cursos especiais na área de Agronomia, Pedagogia e Letras foram conquistados, além de outros na esfera de nível médio.  Turma de especializações foi efetivada, e pelo andar da carruagem, em breve nascerá um mestrado. Uma série de mobilizações, pressões precederam o quadro que hoje desponta na região.  
O geógrafo Milton Santos salienta ao refletir sobre o que se convencionou chamar de globalização, que a revanche para a construção de uma nova sociedade virá dos invisíveis da periferia. Ao se visualizar uma série de nuances da região, um vento sopra para que analisemos que a revanche no sul e sudeste do Pará já começou. Mas, a complexidade que conforma a área em questão, obriga para que tenhamos calma. No entanto, num curto espaço de tempo, avalio, alguns passos importantes foram dados.  
No derradeiro fim de semana tive a oportunidade de voltar à região, que foi a minha faculdade sem paredes. Um Brasil profundo, como pontua Zuenir Ventura quando fez a recuperação da trajetória do ativista Chico Mendes. A convivência com os brasileiros\as humildes desse Brasil profundo não tem dinheiro que pague.
Em Marabá compartilhei o fim de semana com alunos\as do Instituto Federal do Pará (IFPA),  turma de graduação de Educação do Campo, no Centro Cabanagem. Eram perto de 25 pessoas. Os mesmos estão iniciando o processo de formação para a produção de áudio visual voltada para as realidades contemporâneas e históricas da região.  Trata-se de professores\as que atuam na zona rural. Gente de todas as gerações e que, por várias vias abraçaram ou foram abraçados pela carreira.   
Reportagens nos mais diversos suportes, tratados acadêmicos, audiovisuais os mais variados, de diferentes partes do Brasil e do mundo já registraram algumas das realidades das inúmeras dinâmicas do local em debate.
No ambiente de Marabá, o professor Evandro Medeiros, da Universidade Federal do Pará (UFPA), ladeado por um grupo de jovens, realizou uma importante produção sobre  temáticas camponesas. Entre os audiovisuais constam o registro do Massacre da Fazenda Ubá, o da execução do sindicalista José Dutra da Costa (DEZINHO) e um que recupera a trajetória de algumas viúvas.
Agora, a iniciativa de mobilizar professores\as lotados\as na zona rural para que sejam realizadores\as enche os olhos. Espero que as dificuldades inerentes aos primeiros passos não desanime o grupo.  
Conforme informações, além de uma fase de qualificação política e técnica, o projeto  protagonizado pelo IFPA disponibilizará, em primeiro momento, um kit com equipamentos. Um total de cinco para algumas escolas ou grupos de escolas.
Um documento do instituto salienta que entre os objetivos do projeto, consta desenvolver experiências metodológicas e práticas docentes inovadoras com o auxilio da tecnologia da comunicação social, articulando o ensino superior com o ensino básico, visando o processo de ensino aprendizagem dos docentes a partir da relação teoria-prática.
Aos colegas professores\as e educandos\as do curso de graduação de Educação no Campo do IFPA, muito grato pela oportunidade.  E grande axé pela iniciativa. 
 
 
 
 

Pela Escola Única do Trabalho, para muito além da educação liberal burguesa

Pela Escola Única do Trabalho, para muito além da educação liberal burguesa

16/02/2011


Pela Escola Única do Trabalho, para muito além da educação liberal burguesa
Resenha do livro "Caminhos para transformação da Escola: reflexões desde práticas da Licenciatura em Educação do Campo", organizado por Roseli Salete Caldart, traz a crítica marxista aos paradigmas da educação brasileira
Por Cecilia Luedemann
Diante da dificuldade de identificar as diferentes propostas educacionais, os modismos ou oportunismos acadêmicos, encontramos um livro para iluminar os caminhos de educadores e pesquisadores na construção da escola dos trabalhadores. "Caminhos para transformação da Escola – reflexões desde práticas da Licenciatura em Educação do Campo", organizado por Roseli Salete Caldart (setor de educação do MST) e com artigos de Andréa Rosana Fetzner (UNIRIO),  Romir Rodrigues (UFRGS) e Luiz Carlos de Freitas (Unicamp), é muito mais que uma reunião de textos sobre experiências educacionais ou estudos acadêmicos sobre a educação do campo. É um divisor de águas na crítica à escola liberal burguesa, aos seus teóricos e uma proposta concreta de construção de uma nova escola nos marcos da educação socialista. Como todas as grandes obras de referência em educação, tem como qualidades a simplicidade, a síntese e a análise crítica.
Na verdade, este livro é fruto da trajetória dos educadores, educandos e pesquisadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com a participação de especialistas da educação comprometidos com a luta pela educação pública. Uma publicação que comemora 15 anos da heróica atividade educacional do Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra), em 2010.
As experiências e reflexões sobre a educação desenvolvidas pelo MST tornaram-se referência para o debate educacional brasileiro, uma vez que sintetiza um esforço de superação da educação liberal burguesa. Como explica Roseli Salete Caldart, “Hoje no campo, como no conjunto da sociedade, predomina uma educação que conforma os trabalhadores a uma lógica que é de sua própria destruição: como classe, como grupo social e cultural, como humanidade.” (p.64)
Dividido em três partes, o livro trata sobre os seminários e documentos de sistematização, sobre a organização escolar e o trabalho pedagógico e as reflexões específicas sobre a Educação Básica de Nível Médio, os autores nos fazem mergulhar didaticamente nas discussões teóricas e práticas para a construção de uma escola para muito além da educação liberal burguesa, desde os documentos, as experiências concretas das escolas do campo, até as análises críticas das teorias educacionais brasileiras e a retomada das teorias marxistas no campo da educação.
Essa retomada da vertente marxista pode ser claramente identificada no artigo "A Escola Única do Trabalho: explorando os caminhos de sua construção", de Luiz Carlos Freitas.  O autor explica que seus estudos sobre a pedagogia socialista desenvolvida na fértil fase da revolução russa (1917-1930) foram beneficiados com a vivência junto aos estudantes dos cursos de formação de professores das várias turmas de Licenciaturas do Campo e com a equipe pedagógica do Instituto de Educação Josué de Castro.
Este novo caminho da relação entre a teoria e a prática, revitalizou a análise marxista, esclarecendo e iluminando as teses educacionais para a educação brasileira. Antes, Freitas avisa: “O primeiro cuidado é não tentar formular um método de ensino, mas sim um procedimento orientador da ação do coletivo da escola.(...) A escola tem que ser vista, necessariamente, na perspectiva do trabalho coletivo entre educadores (incluído aqui os gestores) e estudantes , de caráter democrático participativo. Retira-se, portanto, o foco do educador, isolado em uma ponta, e do estudante isolado na outra, administrados por um poder superior. Complementarmente, a escola se abre para a relação com outras agências sociais existentes em seu entorno.” (p. 164)
Freitas retoma o conceito de escola e de sala de aula como construções históricas, mostra o avanço do acesso dos trabalhadores, mas denuncia que “(...) boa parte da classe trabalhadora continua sem aprender, relegada a trilhas de progressão cuja função é produzir a não aprendizagem.” (P.156) Por outro lado, mostra que a escola burguesa também tem uma outra função para a classe trabalhadora: “(...) aprendem-se relações de subordinação no processo de gestão escolar; aprendem-se relações de submissão na sala de aula.” (p.156) E mostra que, embora existam profissionais da educação comprometidos e progressistas, “a formação da juventude  da classe trabalhadora não pode ser reduzido à dimensão da luta possível no presente.
Tal projeto necessita considerar a experiência acumulada pela classe trabalhadora em sua caminhada mundial por revolucionar as relações sociais vigentes e ter horizontes mais amplos, a partir dos quais possamos orientar nossa luta presente.” (p.157)
Nessa perspectiva de um projeto histórico, Freitas mostra a importância dos movimentos sociais para a superação da educação liberal burguesa e realizar a tarefa histórica que libertará a educação das travas do capital, citando Pistrak (2009): “É fundamental abrir as portas da escola para a vida.” E o conceito de Escola Única do Trabalho se traduz para “atividade humana construtora do mundo e de si mesmo, como vida, fundamento.”
Freitas explicita o debate educacional brasileiro sobre o tema do trabalho, citando as contribuições e limites da análise de Saviani:
“A formulação de Saviani (Saviani, 2009, pp.63-65) propondo que se parta da prática social para retornar à prática social para retornar à prática social em um outro nível de compreensão, tem sido útil para marcar a relação do processo educativo com a prática social, ou seja, com a vida – embora o autor não dê tal ênfase à sua formulação. Porém, esta proposição tem produzido enfoques limitados quando se trata de pensar o processo pedagógico real. Creio que o fato de ter partido de uma comparação, ainda que crítica, com a estrutura própria de outras teorias pedagógicas burguesas (chamadas de tradicional e Nova) (Saviani, 2009, p.63) pode ter influenciado a formulação pois a forma escolar atual emerge intacta na proposição, sugerindo um caminho por dentro da atual forma escola entre estes dois momentos (prática social inicial e prática social final) – ou seja, um terceiro momento em que a escola não estaria mais na prática e operaria internamente a apropriação do conhecimento, sua incorporação, preparando o estudante para, depois, debruçar-se novamente sobre a prática final, em seu retorno a ela.” (p.160)
O debate de Freitas com a pedagogia histórico-crítica, colocado já em 1996, avança também com Libaneo e Gasparin:
“Estimo, portanto, que o problema está na própria matriz teórica da pedagogia histórico-crítica, a qual circunscreve as tentativas de gerar uma metodologia alternativa ao âmbito da forma escolar atual. Perde, então, sua característica materialista ao deixar a materialidade da vida do lado de fora da escola, sendo esta, dentro da escola, apenas objeto de ‘conversa’ entre professor e aluno, como propõe agora Gasparin.(...) Parafraseando Pistrak (Freitas, 2009) poderíamos dizer que o que se propõe é uma “prática social sentada” no interior das salas de aula das nossas escolas. Talvez este seja o limite das nossas escolas, mas não pode ser o limite da nossa teoria.”(p.163)   
A noção de complexo de estudo também é retirada do campo de sombras para ser debatido à luz das práticas escolares, com base nos estudos de Moisey Pistrak, Celestin Freinet, Isabela Camini e Roseli Caldart: “A noção de complexo de estudo é uma tentativa de superar o conteúdo verbalista da escola clássica, a partir do olhar do materialismo histórico-dialético, rompendo com a visão dicotômica entre teoria e prática (o que se obtém a partir do trabalho socialmente útil no complexo).” (p. 165) E segue uma série de propostas inovadoras no campo da educação marxista, mas já discutidas e experimentadas na educação brasileira, especialmente pelos educadores e educandos do MST.
Referência bibliográfica:
CALDART, Roseli Salete (org.) Caminhos para a transformação da Escola. Reflexões desde práticas da Licenciatura em Educação do Campo. São Paulo : Expressão Popular, 2010. 248 p.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Retratos da Retratos da Política no Campo Brasil 1962-1985

O impacto da repressão política no meio rural
 
O impacto da repressão política no meio rural
28/01/2011 16:41
MDA e SEDH lançam livro com histórias e narrativas de camponeses torturados, mortos e desaparecidos na época da ditadura
Mais uma importante ação no sentido de consolidar o respeito aos Direitos Humanos chega a público, em um livro que reúne informações de acervos e arquivos, além de relatos de experiências do período da ditadura militar, desta vez com o olhar voltado à memória dos trabalhadores rurais brasileiros.
Fruto de parceria entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a publicação “Retrato da repressão política no campo – Brasil 1962-1985 – Camponeses torturados, mortos e desaparecidos” lança luz a uma época de nossa história marcada por arbitrariedades, pela censura e violência. No caso do meio rural, com um agravante: além de comandada diretamente pelo Estado, pela ação das forças policiais e do exército, a repressão política no campo se caracterizou também pela ação de milícias e jagunços a mando de latifundiários.
O objetivo da publicação é, de acordo com as autoras, as antropólogas Ana Carneiro e Marta Cioccari, romper com o silêncio introjetado pelos longos anos de ditadura e dar visibilidade à repressão ocorrida no campo no período. No texto foram registradas as próprias narrativas dos trabalhadores e dos líderes que sofreram violências, assim como dos sobreviventes da repressão do aparato militar e das ações criminosas de senhores de engenho e empresas, por meio de seus capangas.
“O fato de termos dado voz aos camponeses neste livro ajuda a fornecer uma dimensão mais rica e impactante dessa página trágica da história do Brasil e a revelar, ainda que parcialmente, algo dessas memórias dolorosas não dizendo respeito aos camponeses, mas a todos os brasileiros. Devemos considerar, ainda, o fato de que essas violências no campo não desapareceram: continuam ocorrendo de forma flagrante e escandalosa em determinadas regiões do país”, ressalta Marta.
Para a produção do livro, as autoras tiveram acesso a importantes acervos de pesquisa e centros de memória, contando com a colaboração de diversos pesquisadores de destaque no cenário nacional. Uma base importante para o trabalho foram os registros escritos e audiovisuais do Projeto Memória Camponesa, coordenado pelo prof. Moacir Palmeira e conduzido no âmbito do Núcleo de Antropologia da Política do Museu Nacional (NuAP/MN/UFRJ), com apoio do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural  do MDA (NEAD). O Projeto Memória Camponesa realizou diversos seminários e encontros nos estados brasileiros, em parceria com universidades e entidades sindicais, e guarda depoimentos de vários líderes sindicais e de trabalhadores. Acervos de outras universidades também foram consultados e, além disso, aqueles criados pelos próprios trabalhadores e líderes locais em lugares que foram palcos de antigos conflitos, tais como Sapé (PB), Brotas de Macaúbas (BA) e Trombas e Formoso (GO).
As autoras também fizeram viagens de campo a São Paulo, a Pernambuco, ao Ceará, ao Distrito Federal e a Goiás. Foram feitas cerca de 15 entrevistas com líderes sindicais e com assessores de entidades e, adicionalmente, a investigação do tema se baseou em filmes, livros acadêmicos e jornalísticos, produções audiovisuais e transcrições de depoimentos colhidos em projetos diversos.
O livro Retrato da repressão política no campo está disponível para download gratuito no Portal NEAD
http://www.nead.gov.br/portal/nead/publicacoes/

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011







A improvisação de Carlitos
Elias Thomé Saliba
A invenção do cotidiano
Michael de Certeau
Tradução: Ephraim Ferreira Alves
Vozes, 351 págs.

A vida cotidiana, no seu misto de inércia e rotina, nunca constituiu um tema muito nobre para as ciências humanas, nem fundou uma escola de historiadores ou cientistas sociais. Foi só através de um intenso exercício de inquietação crítica, que rejeitava grandes teorias sociais e construções abstratas, que o tema do cotidiano foi ganhando espaço nas ciências humanas nos últimos dez anos. Exercício de reflexão estimulado pelas próprias experiências históricas mais recentes, nas quais a cultura passou a ser celebrada como motivadora de significativas transformações sociais.
Publicado originalmente em 1980, "A Invenção do Cotidiano", de Michel de Certeau, é um livro pioneiro nesse exercício de desvendar as práticas culturais contemporâneas, vistas aí, não mais do ângulo elitista da razão técnica e produtivista, mas pelo lado mais fraco da produção cultural: o da recepção anônima, da cultura ordinária, da criatividade das pessoas comuns.
Para além de certa vertigem populista, por aí já se vê que estamos diante de um livro difícil que não se contenta em definir, ingenuamente, o popular através do povo e/ou vice-versa. Profundamente insatisfeito com as teorias sociais, que pintam o quadro de uma sociedade estruturada em papéis abstratos e estereótipos, Certeau procura esboçar uma teoria das práticas cotidianas e identificar uma espécie de lógica operatória nas culturas populares. Lógica do avesso e da teimosia, fundada quase que apenas no real, pois recusa a escrita como espaço da dominação e do controle; lógica do informal, porque utiliza suas táticas conforme as estratégias dos outros; lógica do instável, porque, sem qualquer ponto de ancoragem emocional busca, afinal, a própria sobrevivência.
Lógica que é muito mais uma "arte de fazer", pois as experiências do homem ordinário não se deixam aprisionar pela linguagem escrita: quer se trate da voz do selvagem, dos primeiros relatos etnográficos, do ato de assistir TV ou de enveredar pelas inesperadas ruas das grandes cidades. Certeau quer buscar uma lógica cujos modelos remontam talvez às astúcias multimilenares dos peixes disfarçados ou dos insetos camuflados e que, em todo caso, é ocultada por uma racionalidade hoje dominante no Ocidente. Por isso, busca exemplos em tradições, provérbios e atitudes que a cientificidade do Ocidente ocultou: a "Arte da Guerra" de Sun Tze, da tradição chinesa; ou o "Livro das Astúcias", da tradição árabe.
Mas encontra "artes de fazer" em todas as sociedades: cita episódios relacionados às gestas de Frei Damião, no Brasil; episódios de "Robinson Crusoé" ou, até, do impagável Carlitos, de Chaplin. Com seu bigodinho e andar de pato, Carlitos tece a rede de uma antidisciplina: rejeita destinos prévios e trajetórias previsíveis, e resiste, com a leveza do lúdico, a toda situação opressiva. Na improvisação sem limites, Carlitos rejeita toda mecanização, procura sempre contornar a dificuldade em vez de resolvê-la e, nesta sua não-aderência às coisas e aos acontecimentos, parece revelar-nos que os objetos de nossa cultura se inscrevem no vazio, não têm qualquer futuro, a não ser fora do sentido que a sociedade lhes atribui.
Por que na cultura, a eficácia da produção teria que produzir necessariamente uma eficácia no consumo? Demontando a suposta passividade do leitor-consumidor, Certeau nos oferece páginas luminosas sobre a atividade da leitura. Mais que mera submissão ao mecanismo textual -do livro, do espetáculo ou de qualquer outro produto cultural-, a leitura é um "ato de espreitamento", uma viagem de nômade, sem paradas obrigatórias: o telespectador lê a paisagem de sua infância na reportagem de atualidades, pois ler "é constituir uma cena secreta", lugar onde se entra e se sai à vontade; é criar cantos de sombra e de noite numa existência submetida à transparência tecnocrátrica. Ou, como concluiu poeticamente Marguerite Duras: "Talvez se leia sempre no escuro... a leitura depende da escuridão da noite. Mesmo que se leia em pleno dia, fora, faz-se noite em redor do livro".
Nem o marxismo, nem as concepções liberais, com suas ambições totalizantes, foram capazes de perceber na vida cotidiana este espaço de gestação de processos alternativos, de esperteza e de inventividade, que se forjava à revelia dos cerrados processos de hegemonia e dominação na modernidade. Certeau faz verdadeiros malabarismos teóricos para se equilibrar entre Freud, Foucault e Bourdieu, mas parece encontrar inspiração nos inquietantes fragmentos de Wittgenstein. Talvez porque o historiador saiba, como o "homem ordinário" de Wittgenstein, que a página em branco é um lugar desenfeitiçado das ambiguidades do mundo e que as narrativas do cotidiano estão mais próximas da intensidade da vida real.
ELIAS THOMÉ SALIBA é professor de teoria da história do departamento de história da USP, autor de "Utopias Românticas

Folha de São Paulo











http://resenhasbrasil.blogspot.com/2009/06/invencao-do-cotidiano.html